domingo, 25 de dezembro de 2011

Postigo da alma



Amanheceu. Mais um dia estio. Calor nas entranhas dos que ainda sentem. Ou pensam que sentem. Se encontram em estado de pura letargia. E alguns permanecem insólitos. E a cidade, num átimo de quase amar. Tépidos. Busca ter alguém pra quem voltar. Pra pedir desculpas. Pra tomar um banho juntos. Sua respiração diz que permanece languidamente vivo. Não tem muito tempo. Escondendo um arcano hierático. Não pode ver sangue. Esconde pelo menos uns 5 litros em si. Locupletando-se em si mesmo. Mais do que seu DNA, um postigo de si.
Não pode se misturar ao outros. Se fazer igual e assim passar despercebido. Diz que cortará suas unhas no quintal apenas para não sujar o interior da casa. Quando na verdade, ele quer apenas observar as estrelas. E ele sabe que não adianta não sujar as ruas apenas quando tem alguém olhando.
Quando nasceu ensinaram-lhe como é o mundo. Inexorável. A mão veio de encontro ao seu corpo. E num vagido instintivo viveu. Abriram-se seus pulmões fazendo o que de mais primitivo sabe o homem. Chorou.
E ele suspirava tão desalentado. Pois não podia mais sonhar. Apaixonado só fazia comprar balas. Comê-las. E  a figura bonificada nesta, dá-la a quem julgava amada. E nem sonhava nesta época entender o amor. Só queria amar. Sonhar pouco é sofrer menos. Gera menos dor. Isso por si só já é utopia. E não se lembrava a última vez que havia sonhado estar voando. Depois de permanecer alguns anos escarmentado, apanhando regularmente de forma sistemática e simétrica, dia-a-dia, é difícil sonhar. Muito cedo aprendeu que há dois tipos de pessoas, os que colam chiclete na cabeça dos outros, e os que se deixam colar. Seu pai impreterivelmente pertencia a primeira classe, e estentóreo,fazia questão de lembrá-lo disto. Não chorar já era quimera. Então ele se esqueceu de sonhar. Algumas noites ele não conseguia dormir, em pensar em duas possibilidades. Dormindo ou se sonha, ou tem-se um pesadelo. Nenhum dos dois é seguro. E ele esqueceu de amar. Como era o amor. Ser gente ocupa muito tempo. Passa-se uma vida inteira para aprender a viver. E não se vive tudo de uma vez. Morrerá resignado a não saber viver.
Quando pequeno, viu algumas formigas estertorando afogadas. Pondo-se à ajuda-las, seu amigo imiscuindo-se interveio dizendo, Elas têm o livre-arbítrio, tem de viver sozinhas, já basta não comê-las. E ele retorquiu, Livre arbítrio? Quer dizer que você está vendo elas morrendo, se matando, sem poder se ajudar, enquanto as outras continuam egoistamente à trabalhar, para evitar a sua fome e desviando-se alheadas da poça sem nem ao menos se abalar que algumas das suas morrem, e não vai fazer nada - Me recuso a colocar um ponto de interrogação numa frase onde está explícito a resposta. Me desculpe se os obrigo a pensar. - Diante desta cena ele viu Deus. Eles nunca estiveram tão próximos. Ele nunca mais viveu esta sensação novamente. Inclino-me diante do ponto final. Escuso-me de aplicá-lo na vida. Enquanto reticências apenas omitem as histórias escritas em três de algumas vidas. Por isso continuo escrevendo...
Seu nome ainda não sei. Mas sei que ele não solta flatos em sua própria presença. É difícil assumir-se humano. Vergonha de si mesmo. Ele queria dar-se um presente de natal. No caminho alguém contou sua história. Como o mundo é. Tinha um homem e uma mulher. Depois havia um homem, uma mulher e duas crianças. Gêmeas. Só restaram elas. O homem esboroou-se. Da mulher restou o corpo. O que nele habitava, evanesceu. Eu dei o meu natal para aquele homem. Ele precisava mais do que eu. O truísmo escorreu de seus olhos, acossando a boca. Mas foi eu quem sentiu o sabor da saudade. E então o menino percebeu o quanto queria alguém pra quem voltar. E no meio da noite tirar o braço enroscado debaixo do seu pescoço. Já que o braço dormiu, mas ele não.  E passou a fumar por embuste de anestesiar-se.
Peço que se alimente frugalmente com o banquete que ofereço, parco como eu. Deitado na cama no espaço que há entre o dormir e o não dormido, espio por um postigo que dá na alma. E o menino procura-se diante dos retratos pueris mal-feitos e bem intencionados. Em fotos antigas não se reconhece. Em frente ao espelho pergunta-se, Quem sou. Nunca é o mesmo.

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