quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Alma-diçoado


Como é difícil dormir quando a vida se torna tão interessante. E há tanto a dizer e a observar que fico sem saber como dizer o inefável. Olha e já não se reconhece. Procura-se entre os cacos do que restou de si, fragmentos de ser. Objeto de mundo. Mudo.
O que ele sempre gostou foi das bonecas, dos vestidos de renda. E se perguntava se era normal gostar dos meninos como ele gostava. Se era normal achar os outros meninos bonitos como ele achava. Em prece ajoelhado, com as mãos entrelaçadas na testa e de olhos cerrados, pedia perdão. Mas o pecado voltava e novamente flagelava-o asceta com seu pecado secreto. E vestia escondido os vestidos de sua irmã, e era impedido por sua mãe de ter os cabelos compridos, onde tacitamente sonhava em passar os dedos à sonhar com o jovem desejado. Fugia de serviços braçais. Temia conversar  brutais. Nada nos é imposto mais que podemos suportar. Mas estar enjaulado era mais que podia. Suplicou forças. Sua delicadeza ofendia aqueles que o feriam e deixaram marcas no mais profundo de seu mar, que até mesmo ele tem medo de mergulhar. Perde o ar. Os dedos que há algum tempo acarinhavam sua cabeça de criança, agora pressionam seu pescoço, impedindo que o ar passe. Sufocou-lhe. Não fosse sua mãe talvez estivesse morto. Mãe e filho abandonados.
Nos livros onde se refugiava era tirado à força pelos colegas que o humilhavam. Batiam. Sua condição era repugnante.  E ninguém via que ele não tinha culpa alguma de ter sido trocado antes mesmo de nascer. Que podia ele fazer por ser uma alma aprisionada? E passar batons escondido já não bastava. Recôndito de si e dos outros. Sem entender por que precisava fingir ser o que não era. O que jamais seria. Ele não tinha escolhido ser assim. E os auxílios hormonais foram mudando seu corpo. Mas ainda não o era.
E o doce harmonioso do melão acalentava-o nas noites inquietas de pensamentos perdidos. Com asas podadas cruelmente. Ferida. Não podia sequer cantar. Rouxinol preso em galo. Este não era seu canto. Seu canto. Fora do lar. Expulso.
Na madrugada sem estrelas a brisa fria arrepia sua nuca. Nos livros de páginas amareladas ele procura um sentido. Alguém que já o tenha entendido. Está mudando seu corpo erroneamente procurando encontrar e trazer à tona a fera adormecida. A água vinda direto da torneira refresca-lhe a alma.
Agora já está mais semelhante ao que desejava. A menina que não pode ser. A mulher que se tornou.
Se antes viver já estava difícil, agora estava insuportável. A sociedade não tinha maturidade o suficiente para quebrar tantas barreiras. Para enxergar que por trás do pederasta transgênero há um ser-humano indelével. Com sangue percorrendo suas veias. Que acorda no meio da noite sufocado pelos dedos do pai, que mesmo num lúgubre universo onírico, continua o fazendo estertorar. Depois de muito lutar contra o ser mumificado e alma-diçoado dentro de si, libertou- a. Libertou-se. E esta jamais voltará a dormir.
Sem escolha jogou-se na rua. Ao que aparentemente julga-se mais fácil. Indolor. Indolente. E tratada por homens sórdidos como objeto de prazer sem alma, enojada. Vomitou. Tirou os sapatos. Sentou no asfalto. Pausadamente viveu. Desejou morrer. Desejou um colo, um afago. Mas longe de fugir de si mesmo, fazia o que nenhuma mulher se sujeitaria. O que nenhum ser merecia.
O batom e o sangue derramados, gota a gota, poderiam narrar fatos diferentes. Onde tudo fosse mais fácil. Onde ser humano bastasse. Onde fôssemos semelhantes ao Divino. Onde houvesse respeito. Onde Caim não mate Abel. Onde a lâmina afiada de navalha sob a carne pútrida não escreva a história de quem tentou ser. E tentando já não era mais, humano. E não quis ser. E foi. Era.

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